Exercícios poéticos, apaixonados e patéticos: pequenos mergulhos e vôos, para compartilhar...

30 de abr. de 2011

O impulso de florir...


As imagens transbordam

As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?



Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I
Caminho



Estudo do vento para uma bailarina

o vento sopra a tarde para o sol
pólen de rosa e violeta sideradas
mar em mármore azul e véus de nuvem
…talhar do vento para uma bailarina nas águas

em dança de peixes sem asas
sonha a bailarina coisas pássaras
— porque sonho de pássaro nas águas?
— é culpa do mar ser espelho?

em sua noite de casa
traz a bailarina sapatilha e sal
rastro de mar por dentro
cobre de branco o chão onde passa
branco de pombos e de asas
vestígio de um poema antigo
da espuma quando se deita na praia

o telhado é quatro águas
é negro em sua noite de casa
dança a lua em véus de ágata
sombra e borrão de cal
o telhado da casa é quatro águas
sonha a bailarina coisas pássaras

— como pousar
bailarina nascida das águas
se peixe se vento se asas?


(Jacineide Travassos, in O Livro dos Ventos)




Sabendo-te pérola
mergulhara no mar
perdendo o fôlego
adentrara tua concha
imersa em nuvens

Sabendo-te pérola
quisera-te tal qual o homem esférico
de Platão
sabedor da origem
dos fins do homem

Sabendo-te pérola
quisera-te também frágil
nascido das águas
ou da lua
da queda do orvalho
sobre a concha
era-me a ti


(JACINEIDE TRAVASSOS)

24 de abr. de 2011

Ventos e movimentos azuis...



SONETO VIII

Se não fosse porque têm cor-de-lua teus olhos,
de dia com argila, com trabalho, com fogo,
e aprisionada tens a agilidade do ar,
se não fosse porque uma semana és de âmbar.

Se não fosse porque és o momento amarelo
em que o outono sobe pelas trepadeiras
e és ainda o pão que a lua fragrante
elabora passeando sua farinha pelo céu,

oh, bem-amada, eu não te amaria!
em teu abraço eu abraço o que existe,
a areia, o tempo, a árvore da chuva,

e tudo vive para que eu viva:
sem ir tão longe posso ver tudo:
vejo em tua vida todo o vivente.

(Pablo Neruda)





MEDIADORA do VENTO

Ligeira sobre o dia
ao som dos jogos,
desliza com o vento
num encantado gozo.

Pelas praias do ar
difunde-se em prodígios.
Tudo é acaso leve,
tudo é prodígio simples.

Pequena e magnífica
no seu amor volante
propaga sem destino
surpresas e carícias.

Pátria, só a do vento
de tão subtil e viva.
Azul, sempre azul
em completa alegria.

(António Ramos Rosa, in "Mediadoras")




A FESTA DO SILÊNCIO

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.

António Ramos Rosa,
em "Volante Verde"


18 de abr. de 2011

Fios de música, linhas de luz...




Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo.


(António Ramos Rosa)



Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.

Se é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo - esplêndido - pensamento.


(Lya Luft)



Sua beleza é total
Tem a nítida esquadria de um Mantegna
Porém como um Picasso de repente
Desloca o visual

Seu torso lembra o respirar da vela
Seu corpo é solar e frontal
Sua beleza à força de ser bela
Promete mais do que prazer
Promete um mundo mais inteiro e mais real
Como pátria do ser


(Sophia de Mello Breyner Andresen)



Iré al otro lado de la montaña,
¡Ve allí también, oh luna!
Noche tras noche
nos haremos compañía.

Si mi corazón brilla,
la luna piensa
que esa luz le pertenece.


Monje japonés Myoe (1173-1232)

8 de abr. de 2011

PIANO ONÍRICO



O HORIZONTE DAS PALAVRAS

Sem direcção, sem caminho
escrevo esta página que não tem alma dentro.
Se conseguir chegar à substância de um muro
acenderei a lâmpada de pedra na montanha.
E sem apoio penetro nos interstícios fugidios
ou enuncio as simples reiterações da terra,
as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.
Tentarei construir a consistência num adágio
de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.
E na substância entra a mão, o balbucio branco
de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,
um organismo verde aberto sobre o mar,
as teclas do verão, as indústrias da água.
Eu sou agora o que a linguagem mostra
nas suas verdes estratégias, nas suas pontes
de música visual: o equilíbrio preenche os buracos
com arcos, colinas e com árvores.
Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.
O impronunciável é o horizonte do que é dito.


(António Ramos Rosa in "Acordes")



É uma corrente de ar brilhante, é um lugar que emerge
De obscuras veias. Que leveza no vento! Estou no meio do espaço.
Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.
Sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde.
O que eu amo está perto entre a terra e o ar .

(Antonio Ramos Rosa)







IMAGEM: "PIANO ONÍRICO". Pintura de Ana Luisa Kaminski